Fonte: anda.jor.br
Crescimento de ocorrências de abandonos por causa da pandemia e da crise econômica são registrados por voluntários que cuidam dos bichinhos
A vendedora Maria Lúcia dos Santos, 50 anos, acorda todos os dias antes mesmo de o sol nascer. A rotina não pode parar, mesmo com a Feira do Guará fechada há mais de um mês para a venda de roupas, ofício dela. Afinal de contas, é justamente neste momento de férias forçadas que a demanda é maior no trabalho que ela sente mais prazer: cuidar dos 50 gatos que tem em casa.
Lúcia é protetora de animais desde 2010. Começou a atividade depois que chegou para trabalhar na feira e viu um gato sozinho entre duas bancas, preso. Depois de chamar os bombeiros para salvá-lo, os militares entregaram o bichano a ela. Sem ter como dizer não, o bicho foi levado para casa.
Depois de alguns meses, a vendedora decidiu abrigar mais um gato, depois outro, e a “família” foi crescendo até chegar a 15. Sempre que o número aumentava muito, Lúcia achava uma maneira de doar, principalmente em feiras de adoção que acontecem em todo o DF.
Com a chegada da pandemia do novo coronavírus, no entanto, os eventos precisaram ser cancelados e, segundo ela, o número de gatos abandonados aumentou. “Até março, eu estava só com 10 gatos. Depois dessa doença, fui recebendo cada vez mais mensagens de pessoas encontrando bichos na rua e em caixas, fora os que eu mesma encontrava”, diz.
50 gatos em casa
Tanta vontade de ajudar tornou a situação insustentável. Hoje são 50 felinos dentro da casa de Lúcia, mais do que ela imaginava ser capaz de comportar. Os custos, por exemplo, a feirante ainda não teve coragem de contabilizar. “Não coloquei nada na ponta do lápis, pois fico com medo. Eu cuido de todos é com doação mesmo, com a ajuda das pessoas”, frisa.
Apesar de todas as dificuldades, ela se diz feliz pelo trabalho que realiza. “Para mim é um prazer. Estou toda arranhada, mas é assim mesmo. Não me sinto sozinha, eles são a minha companhia”, afirma.
Despesas
Amiga de Lúcia, a protetora Lucimar Aparecida, 46 anos, enfrenta situação semelhante e igualmente caótica. Ao contrário da amiga Lúcia, a idealizadora do Projeto Acalanto-DF faz questão de manter o quadro de dívidas atualizado, até para saber se consegue adicionar um cachorro ou gato na já extensa lista de cuidados.
Até a última vez que contabilizou, no dia 27 de abril, eram mais de R$ 4 mil em débitos para ajudar os animais. Isso sem contar os três gatos e uma cadela que ainda não tinham orçamento para as cirurgias que precisam ser feitas.
“Eu tinha 20 bichos aqui e agora são 35. Infelizmente, já atingi meu limite, pois gostaria de ajudar mais”, afirma. No caso dela, foram nove adoções nos primeiros três meses do ano enquanto que em abril, Lucimar se desfez de apenas um cachorro.
Contas atrasadas
As contas de luz e água já estão atrasadas e serão deixadas de lado mais uma vez. A prioridade tem sido comprar comida para ela e os companheiros. “Eu aguento, no máximo, mais 30 dias nessa situação. As doações diminuíram bastante por causa da crise econômica e eu não sei como fazer”, preocupa-se.
Segundo ela, são pelo menos cinco pedidos de socorro que chegam no grupo de protetores todos os dias, algo que nunca viu acontecer em mais de oito anos atuando na área. “Antes, os abandonos aconteciam de forma sazonal. A gente já se programava para a época de férias no meio do ano e, principalmente em dezembro e janeiro. Agora, é toda hora”, lamenta.
Uma vez que Lucimar não pode mais abrigar gatos ou cachorros em casa, ela diz que tenta ajudar no que pode. Normalmente, anúncios dos animais encontrados são disparados em grupos de WhatsApp. “Saio compartilhando até achar alguém que consiga abrigar”, explica.
Problemas no campo
Nas áreas rurais do DF, a situação é tão preocupante quanto nas regiões urbanas. De acordo com a agricultora Quitéria Maria dos Santos, 45, todos os dias em que faz o trajeto do Núcleo Rural de Planaltina até o Plano Piloto, ela vê caixas com filhotes e animais adultos doentes às margens da BR-020. “Muitas vezes, na ida, eu observo os animais e tento buscá-los na volta. O triste é que muitas vezes os adultos acabam atropelados”, conta.
O que ela não esperava era um aumento tão significativo no número de animais que acharia na estrada após o início da pandemia. “Antes eu via dois ou três por semana. Agora, já cheguei a ver 10 em um dia.” Tantos bichos encontrados fizeram crescer a lotação da chácara dela. Onde havia 14 cachorros, agora são 32. Sem contar os outros 18 gatos que estão na outra casa dela, em Sobradinho.
Além do trabalho de distribuidora de legumes, Quitéria também faz diárias como cozinheira. As complicações econômicas causadas pela Covid-19, no entanto, diminuíram o trabalho dela. “Estou há 40 dias sem cozinhar onde eu costumava trabalhar. Fui dispensada. A situação é difícil, pois não posso tirar o dinheiro dos legumes para os animais. É o que eu consigo para comer e sobreviver”, destaca.
Segundo a produtora, os animais são bem tratados graças a uma veterinária que os atende, mas sem cobrar a conta na hora. A ração é feita em casa.
“Já tenho R$ 5 mil de dívida com a doutora e isso era antes da pandemia. Tento fazer de tudo para economizar, inclusive fazer a própria comida deles com uma receita passada pela veterinária”, conta. Ao todo, foram 125 quilos de ração para cachorros nesse último mês e 22 quilos para gatos.
Os interessados em ajudar, podem entrar fazer doações entrando nas redes sociais do Projeto Acalanto-DF
Risco de contaminação não é desculpa
De acordo com a veterinária Camila Maximiano, da Clínica Pompeu, nunca há uma justificativa para abandonar animais, e a crise do coronavírus é mais uma desculpa dada por quem não quer cuidar do bicho de estimação. Conforme explica, ainda não existe comprovação de que os animais são contaminados pelo vírus.
“Eles podem ser transportadores do vírus, assim como qualquer outra superfície, a exemplo de mãos, maçanetas e volante de carro”, explica. Por esse motivo, o mais importante é manter os gatos e cachorros bem limpos.
Já uma das participantes da ONG Toca Segura, Danielle Mansur, pede para aqueles que encontrarem animais na rua tentem ajudá-los. “Sem as feiras de adoção, estamos todos lotados. Estamos fazendo as doações via internet, mas os relatos de abandono são muito maiores do que conseguimos doar”, explica.
Por isso, ela incentiva que vizinhos, por exemplo, adotem o cachorro encontrado na rua. “Uma vacinação e castração, divididos por cinco ou seis pessoas não sai caro. Todos nós podemos ser protetores de animais”, reforça.
O que diz o GDF
Procurada, a Secretaria de Saúde do DF/Zoonoses informou que atua apenas em casos específicos, como “medidas preventivas e profiláticas, situações de vínculo epidemiológico e risco da Saúde Pública, tais como vacinação contra a raiva em cães e gatos, diagnósticos laboratorial de leishmaniose visceral ou raiva, além da identificação de espécies de importância em Saúde Pública”.
A pasta reforçou que não faz trabalho de resgate de animais.
Fonte: Metrópoles.