A consultoria KPMG fez um levantamento e apontou uma suposta ligação entre ministros do STF e a Seguradora Líder, responsável pela gestão do seguro DPVAT
Auditoria nas contas da Seguradora Líder, responsável pela gestão do seguro DPVAT, questionou uma série de procedimentos na gestão da empresa, incluindo pagamentos por prestação de serviços para pessoas próximas a políticos, a integrantes do governo federal ou ligadas a ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), muitas vezes sem os devidos detalhamentos e controles.
A auditoria foi realizada pela consultoria KPMG, a pedido da atual gestão da seguradora. A análise dos documentos e processos abarca o período que vai de 2008 a 2017.
O documento, com cerca de mil páginas, foi obtido pela reportagem. Parte dele avalia o envolvimento da Líder com o que a KPMG chama de "pessoas politicamente expostas".
São considerados politicamente expostos, segundo definição redigida pelo Coaf (Conselho de Atividades Financeiras), os agentes públicos que desempenham ou tenham desempenhado, nos últimos cinco anos, no Brasil ou em países estrangeiros, cargos, empregos ou funções públicas relevantes, assim como seus representantes, familiares e colaboradores.
Pelo manual de boas práticas corporativas, empresas, alinhadas com a lei anticorrupção no Brasil e no exterior, devem ter controles internos para evitar que o contato com agentes públicos leve a atos de corrupção, lavagem de dinheiro, fraudes, tráfico de influência ou conflito de interesse.
A KPMG destacou no relatório ter identificado que a relação da Líder com vários agentes públicos não atendeu boas práticas corporativas e apresentava "risco de sanções por descumprimento à lei anticorrupção".
A consultoria destacou, por exemplo, as relações com o escritório Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça e Associados. De 2009 a 2016, a Líder fez ao escritório 21 pagamentos, totalizando R$ 3,67 milhões. Esse escritório foi constituído em 2013, como sucessor do escritório Luís Roberto Barroso & Associados, do qual o ministro do STF Luís Roberto Barroso era sócio –ele se desligou ao se tornar ministro da corte, em junho de 2013. Rafael Barroso Fontelles, que dá nome à banca, é sobrinho do ministro.
Os sócios atuaram na defesa da Líder no STF em duas Adis (Ação Direta de Inconstitucionalidade) que alteravam regras do DPVAT. A KPMG afirmou que, apesar de a quantia ser elevada, a seguradora não tinha detalhes sobre a prestação dos serviços. A decisão dos julgamentos das duas Adins foi a favor da Líder.
A KPMG destaca que em 2012, enquanto ainda não havia sido nomeado ministro, o escritório que levava o nome de Barroso recebeu da Líder R$ 100 mil para fazer um parecer contrário à ADI 4.823 como amicus curiae (que participa do processo como parte interessada).
O contrato, diz o relatório, previa pagamento de mais R$ 400 mil em honorários a título de êxito.
A consultoria destacou que em 2014, quando Barroso já era ministro, essa ADI foi declarada improcedente na corte: "Importante destacar que, para a ADI 4.823, não houve julgamento, uma vez que o relator, ministro Luiz Fux, declarou não tem conhecimento da ação direta de inconstitucionalidade. O fato, em todo caso, favoreceu a seguradora Líder", afirma um dos trechos.
No julgamento da outra ADI, a 4.350, que tramitou de 2009 a 2014, Barroso também não participou por estar impedido.
Outra relação com pessoa politicamente exposta destacada pela KPMG envolve o advogado Mauro Hauschild, procurador de carreira do INSS que atuou como assessor do ministro José Antonio Dias Toffoli, hoje presidente do STF.
Toffoli foi advogado-geral na AGU (Advocacia-Geral da União) de março de 2007 a outubro de 2009. Em maio de 2007, Hauschild assumiu como coordenador-geral do gabinete de Toffoli na AGU. Em fevereiro de 2008, passou a ser diretor da escola da AGU. De agosto a outubro de 2009, Hauschild foi advogado-geral adjunto na mesma AGU.
Quando Toffoli assumiu como ministro do STF, em outubro de 2009, Hauschild o acompanhou para atuar como seu assessor e chefe de gabinete. Ele assessorou Toffoli até o início de 2011, quando deixou o posto no STF para ser presidente do INSS, onde ficou até outubro de 2012.
Em janeiro de 2013, ele assumiu como procurador do INSS em Lajeado (RS), onde ficou por sete meses. Desde 2014, tem seu próprio escritório de advocacia.
A auditoria da KPMG detalha que a Líder transferiu R$ 3 milhões a Hauschild de 2012 a 2016. Nesse período, ele já não atuava diretamente com Toffoli e ocupou cargos no INSS.
Os pagamentos foram feitos por meio do escritório Stelo Advogados. A KPMG ainda destaca que o Stelo Advogados foi alvo de operação da Polícia Federal por suspeita de envolvimento num esquema de pagamento de propinas para evitar o fechamento de uma seguradora no Rio Grande do Sul.
A KPMG também destacou uma doação da Líder para financiar a realização de um seminário sobre seguros da Escola de Magistratura, em São Paulo, em outubro de 2011. O recurso cobriu despesas do evento promovido pela Associação dos Magistrados Brasileiros e Escola Nacional de Seguros. Os ministros do STF Ricardo Lewandowski e Barroso participaram do evento.
O governo de Jair Bolsonaro tenta acabar com o DPVAT alegando que sua operação tem custos muito elevados quando comparados ao do mercado privado e que há indícios de fraude na gestão. A defesa do DPVAT tem gerado discussões jurídicas que terminam por serem resolvidas pelo STF.
Em 11 de novembro, Bolsonaro editou uma MP (medida provisória) extinguindo o DPVAT. O partido Rede Sustentabilidade a questionou no STF. No dia 19 de dezembro, a corte, em sessão virtual do plenário, suspendeu a MP.
O relator da ação, o ministro Edson Fachin, entendeu que o seguro DPVAT não pode ser tratado por MP, mas apenas por lei complementar, e foi seguido por cinco colegas: Alexandre de Moraes, Marco Aurélio Mello, Rosa Weber, Dias Toffoli.
O ministro Luiz Fux também foi contra a MP, mas por outra razão. Argumentou que a extinção do DPVAT sobrecarregaria o SUS e, por conseguinte, o orçamento da saúde, pois o sistema público passaria a arcar sozinho com as despesas dos acidentes.
Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello rejeitaram o pedido de suspensão da medida provisória. A ministra Cármen Lúcia não participou do julgamento. Luís Roberto Barroso declarou-se impedido.
Em 27 de dezembro, em nova ofensiva contra o seguro obrigatório, o Conselho Nacional de Seguros Privados, ligado ao Ministério da Economia, aprovou a redução dos valores do DPVAT a partir de 2020.
A redução foi questionada pela Líder no STF. Em 31 de dezembro, Toffoli concedeu uma liminar provisória mantendo os valores originais mais elevados.
No fim da manhã da quinta-feira (9), Toffoli voltou atrás na decisão e restituiu os descontos. No início da noite de quarta-feira (8), a assessoria do gabinete do ministro havia sido procurada para dar um posicionamento sobre os temas tratados nesta reportagem.
OUTRO LADO
A Seguradora Líder, em nota, afirmou que, no segundo semestre de 2016, a administração, "ciente da sua relevância na prestação de serviços de seguro no país e comprometida com a efetiva lisura e idoneidade de suas operações, por sua exclusiva iniciativa, contratou uma consultoria internacional de renome para a realização, de maneira absolutamente isenta e independente, de um amplo e minucioso trabalho de auditoria de suas operações".
Destacou que, após receber o relatório, seguiu as recomendações da KPMG: "Foram adotadas todas as medidas administrativas e de compliance cabíveis, alinhadas com os valores de retidão e transparência que norteiam a Administração da Seguradora Líder".
Disse que, "em razão de o referido documento conter alguns temas que, administrativamente, não cabiam à Seguradora Líder avaliar, ele foi encaminhado, de forma espontânea e reservada, à Susep [Superintendência de Seguros Privados]".
Por fim, disse que nas demonstrações financeiras de 2017, publicadas e disponibilizadas em seu site, reportou o trabalho realizado.
A assessoria do presidente do STF, Dias Toffoli, disse que, no período citado, o ex-assessor Mauro Hauschild já não atuava no gabinete do ministro. "Entendo que, por isso, não há o que comentar. E a decisão de classificar o presidente como PPE [pessoa politicamente exposta] deve ser dirigida à seguradora."
A assessoria do ministro Luís Roberto Barroso disse que ele "se desligou inteiramente do seu antigo escritório ao tomar posse no STF, em junho de 2013, com ele não mais mantendo qualquer relação. Após a sua saída, o escritório, inclusive, mudou de nome. O ministro não atuou em nenhum dos casos do DPVAT, tendo se dado por impedido".
A assessoria do ministro Ricardo Lewandowski disse que ele não tem nenhum envolvimento com a Líder.
O advogado Mauro Hauschild, por sua vez, disse desconhecer a auditoria da KPMG, possivelmente pelo caráter sigiloso do documento. Mas explicou sua atuação em relação à Líder.
"Fui consultor/advogado da empresa [Líder], tendo prestado regulamente meus serviços durante três anos, analisando e contribuindo na elaboração das teses jurídicas de defesa perante o Poder Judiciário", disse Hauschild.
Afirmou ainda que "era sócio com apenas 1% das quotas sociais daquele escritório no RS [o Stelo Advogados] e desconhecia os termos do contrato, apenas realizava o trabalho de consultoria/advocacia".
Ele também disse que está fora da AGU e de cargos em governo desde julho de 2013. Afirmou ter pedido licença para interesse particular do cargo de procurador federal e que o contrato de consultoria e advocacia é posterior à sua licença. Por fim, acrescentou que o conceito de pessoa politicamente exposta permanece por mais cinco anos após o afastamento do cargo.
Procurados, o ministro Luiz Fux e o Stelo Advogados não responderam aos contatos até a publicação desta reportagem.
*Com informações Noticias ao minuto